Transporte público e segurança viária: tudo a ver

Foi isso o que indicou um recente estudo feito pela CNT

Um trânsito violento não é fruto apenas de condutores mal preparados. Variáveis como características do pavimento, da sinalização e da geometria das vias importam – e muito –, como constata o recente estudo “Acidentes Rodoviários e a Infraestrutura”, da CNT (Confederação Nacional do Transporte).

Victor Pavarino, consultor de segurança viária da OPAS/OMS (Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde), vai além: privilegiar o fluxo de veículos em detrimento da mobilidade do pedestre é um equívoco. A fatalidade das vias só diminuirá com a expansão consistente do transporte público de qualidade.

A busca pela redução do número de mortos e feridos no trânsito depende de ações coordenadas, que incluem, por exemplo, esforços de engenharia e fiscalização. Nesse sentido, qual é a importância – e as limitações – da educação de trânsito?

O discurso da educação redentora, como “base de tudo”, é sedutor e muito utilizado, pois é uma fala que dificilmente encontrará oposição – assim como ninguém discordará de que saúde e segurança são importantes. No entanto, clichês, como dizer que “tudo é uma questão de educação”, são falaciosos, uma vez que podem encorajar a ilusão de que a educação, na forma de transferência de conhecimento ou campanhas, se basta.

A educação pode muito, mas não pode tudo. Se estamos falando de ações coordenadas de engenharia e fiscalização, isso implica que ela é parte complementar do conjunto de esforços. Se prevalece a impunidade, ou sua sensação “térmica”, e faltam condições materiais para o comportamento seguro – a exemplo de boas calçadas, ruas que limitam as velocidades –, o discurso educativo se esvazia. Isso também é ruim para os educadores, porque imputar à educação a condição de solução para todos os males apenas faz recair sobre os profissionais dessa área uma carga injusta, além de muita frustração.

Países em desenvolvimento são os mais impactados pelo trânsito violento. Em vez de alocar recursos em campanhas de educação, seria preferível investir na sensibilização (advocacy) dos responsáveis pela gestão do trânsito?

A educação da população e o advocacy em favor de uma gestão eficaz não são excludentes. No entanto, a campanha só terá algum sucesso se o público-alvo vir algum sentido no discurso. Por exemplo, convencer um idoso ou uma gestante a desviarem de suas rotas, caminhar três vezes mais, subir o equivalente a quatro andares e andar por uma passarela insalubre – tudo isso para, no mais das vezes, apenas não prejudicar o fluxo veicular – é apenas um jeito de conformar o pedestre a um ambiente perigoso. Algo para o gestor lavar as mãos, dizer que “fez a sua parte, mas a população não colabora”.

Quando e quanto alocar de recurso em cada ação deverá, naturalmente, depender de cada caso. Em alguns, a informação será vital, e os recursos para essa ação educativa são tão importantes quanto o que se aloca para as ações de engenharia, fiscalização etc. Já em outras, a própria ação de engenharia – por exemplo, um alargamento de calçada, uma intervenção viária que induza à redução da velocidade – já cumpre em si uma função pedagógica. Ou seja, é ela mesma uma educação.

A percepção de que as lesões no trânsito são um problema de saúde pública remonta aos anos 1960. Seria correto dizer que o reconhecimento desse paradigma mudou o desenho das políticas públicas de certos países? O senhor poderia mencionar alguma experiência bem-sucedida?

O impacto das lesões e mortes no trânsito, implicando custos socioeconômicos de grande monta – e onde os custos pré e pós-hospitalares representam grande percentual –, influenciou políticas públicas, principalmente em países de alta renda. E não apenas na segurança viária, mas, também, na indução do transporte ativo, no investimento em ciclovias e na qualidade do transporte público. Países europeus e o Japão, por exemplo, já identificam isso desde a segunda metade do século passado. Mais tarde, Canadá, algumas cidades dos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia passaram a fazer o mesmo. Mas, na maior parte dos países em desenvolvimento, a mentalidade sobre os ditos acidentes serem um “preço natural do progresso” ainda impede o avanço das políticas públicas.

Hoje, o uso de smartphones ao volante é responsável por um número elevado de acidentes. Esse seria um caso exemplar para a adoção das campanhas de conscientização do motorista direcionadas à conduta individual?

Sem dúvidas. Principalmente em função da grande dificuldade de fiscalizar quem faz uso desses aparelhos com recurso como viva-voz, por exemplo.

É dito que o número de mortos e feridos é a ponta do iceberg de um problema maior. O senhor poderia comentar um pouco sobre a “base” do iceberg? Em que medida o incentivo ao transporte público contribui para um cenário menos violento?

Pense em uma pirâmide onde apenas a ponta representa as mortes e, abaixo, estão largas camadas que se referem às lesões que demandam hospitalização, as lesões que demandam atenção de urgência/emergência, as lesões tratadas fora do sistema de saúde, não tratadas ou não reportadas. Pois bem, em termos globais, para cada morte no trânsito, a OMS estima 15 traumatismos que requerem hospitalização e 70 lesões menores.

O transporte público tem papel estruturante na segurança viária. Além do mais, promove inclusão e desenvolvimento social. No Brasil, os dados do Ministério da Saúde para 2016 apontaram que os usuários de motos e carros representaram, respectivamente, 32% e 24% dos mortos no trânsito e os que estavam em ônibus, menos de 1%. Assim, a migração modal para o transporte público – particularmente dos modos mais vulneráveis – é muito desejável, fora os ganhos do ponto de vista ambiental e as vantagens do ponto de vista coletivo.

Fonte: Agência CNT de Notícias